quarta-feira, 4 de abril de 2012

RAMÓN SAMPEDRO E O DIREITO DE MORRER


Você, amigo leitor, gosta de assistir a filmes? Se a resposta for positiva, indico-lhe então um filme verdadeiramente lindo e comovente. Chama-se “Mar Adentro”, de Alejandro Amenábar.
Dezembro passado, encaminhei a meus leitores alguns artigos em que fiz comentários acerca da eutanásia. Um leitor amigo me indicou o filme mencionado acima, dizendo-me que os meus argumentos a favor da eutanásia aparecem nessa película cinematográfica espanhola. Confesso, caro leitor, que fiquei curioso para ver o filme. Dias depois, fui a uma locadora bem perto de minha residência. Para a minha alegria, encontrei facilmente o filme. Chegando ao meu apartamento, coloquei o disco dvd no blue-ray, e fiquei perdidamente apaixonado pelo filme. Gostei tanto que resolvi gravá-lo. Há, no disco dvd, uma informação de que se trata de uma história real, vivenciada pelo espanhol Ramón Sampedro Cameán. O filme foi produzido com base no livro “Cartas do inferno”, de autoria do próprio Ramón Sampedro. E esse filme ganhou o Oscar em 2005, na categoria de melhor filme estrangeiro. No dia seguinte, após assistir ao filme por 2 vezes, fui à Livraria Cultura que fica situada na Casapark, bem próxima ao Parkshopping. Não encontrei o livro, porém fiz o pedido. 4 dias depois, a Livraria Cultura me comunica, por e-mail, que o livro havia chegado. Na mesma hora, já fui buscá-lo. Em duas tardes, li-o por completo. Dois dias depois, também em duas tardes, reli-o. Na capa do livro, está a foto real do Ramón Sampedro.
Ramón Sampedro, caro leitor, nasceu no dia 5 de janeiro de 1943 em Xuño, uma pequena aldeia da província de La Coruña, na Espanha. Quando ele tinha 22 anos de idade, embarcou como mecânico em um navio mercante norueguês, e, como marinheiro, percorreu 49 portos do mundo inteiro. Ramón esteve também no Brasil, no porto de Fortaleza, capital do Ceará. No dia 23 de agosto de 1968, com 25 anos de idade, Ramón, de um rochedo, pulou na água do mar apenas com o intuito de tomar um gostoso banho. A maré havia baixado e o choque de sua cabeça contra a areia produziu uma fratura na 7ª vértebra cervical. Ramón ficou tetraplégico. Apenas mexia a cabeça. Nada de braços, de pernas, de ombro, enfim, de todo o seu corpo. Viveu durante 30 anos sua tetraplegia, lutando pelo direito de morrer dignamente por meio da eutanásia. A Justiça espanhola não lhe deu esse direito. Em janeiro de 1998, com 55 anos de idade, Ramón, com a ajuda de uma mão amiga, conseguiu seu intento.
O filme “Mar Adentro” mostra o sofrimento e a luta de Ramón Sampedro para pôr um fim à sua própria vida. Tetraplégico, após a morte de sua querida mãe, que cuidava dele, Ramón foi morar na humilde casa de seu irmão José, casado com Manuela, localizada bem próxima ao rochedo de onde Ramón saltou para a sua tetraplegia. Ele não queria mais viver. Passava todo o tempo deitado numa cama. A cada 3 horas, Manuela tinha que movimentar o corpo dele para mudar de posição. Para escrever, Ramón colocava a caneta na boca, já que seus braços e mãos não tinham movimento algum. Seu sobrinho, Javi, filho de José e Manuela, digitava o que seu tio escrevia com sacrifício. Apesar de querer morrer, Ramón era um homem brincalhão e gozador. Mais tarde, seus escritos foram reunidos formando o livro “Cartas do inferno”. Nesse livro, pois, estão presentes as poesias e as cartas feitas por Ramón em resposta às inúmeras cartas que ele recebia, umas contra a eutanásia, outras, a favor. Inclusive, no final do livro, encontra-se a última carta, de despedida, que ele fez para a sua família.
Ramón era um homem muito inteligente. Percebe-se essa qualidade pela força de seus argumentos a favor da eutanásia. No início do filme, ele recebe, em seu quarto, a jovem Júlia que veio para fazer uma entrevista. Eis, amigo leitor, uma parte da conversa entre os dois:
JÚLIA --- “Ramón, por que morrer?”
RAMÓN --- “Bem... Eu quero morrer porque a vida para mim, neste estado... A vida assim não é digna. Entendo que outros tetraplégicos possam se ofender quando eu digo que a vida assim é indigna. Mas eu não julgo ninguém. Quem sou eu para julgar os que querem viver? Por isso, peço que não me julguem, nem quem me ajude a morrer.”.
Na metade do filme, aparece a cena em que Ramón recebe a visita do padre Francisco, também tetraplégico. Padre Francisco em sua cadeira de rodas motorizada não consegue subir ao quarto de Ramón. Pede a Andrés, outro padre, que suba a fim de dar lições de ânimo a Ramón. As cenas são, realmente, engraçadas. O padre Andrés, de tanto subir e descer, levando recados e respostas, fica cansado. Ramón, então, resolve, de sua cama, falar bem alto a fim de que o padre Francisco o escute. Eis, caro leitor, um pouco do debate entre o padre Francisco e Ramón Sampedro:
RAMÓN - “Por que a Igreja mantém, com tanta paixão, essa postura de medo da morte? Porque sabe que perderia a freguesia se as pessoas perdessem o medo do além. Padre Francisco, está me ouvindo?”
PADRE FRANCISCO: - “Sim. Escuto você, Ramón!”
RAMÓN - “Por que misturar as coisas? Espero que não tenha vindo fazer demagogia. Pois isso, vocês, jesuítas, sabem muito bem.”.
PADRE FRANCISCO: - “Não. Claro que não! Mas, já que você falou em demagogia, Ramón, não acha que demagógico é dizer “morrer com dignidade”? Por que não deixa os eufemismos e diz, em alto e bom som, com toda crueldade, que vai se matar? E pronto!”
RAMÓN - “Não deixa de me surpreender que mostre, ante minha vida, tanta sensibilidade, considerando que a instituição que o Senhor representa aceita, hoje em dia, a pena de morte, e condenou, durante séculos, à fogueira os que não pensavam ‘corretamente’?
PADRE FRANCISCO – “Agora, você está sendo demagógico!”
RAMÓN - “Claro! Mas deixemos os eufemismos, como você disse. Isso é o que teriam feito comigo, não? Queimar-me vivo por querer a liberdade!”
PADRE FRANCISCO - “Ramón, meu amigo! Uma liberdade que elimina a vida não é uma liberdade!”
RAMÓN - “E uma vida que elimina a liberdade não é vida! E não me chame de amigo! E deixe-me em paz!”.
Outra parte muito bonita do filme ocorre quando o advogado de Ramón Sampedro o defende no Tribunal, perante os juízes de Direito:
“Em um Estado que se declara laico, que reconhece a propriedade privada, e cuja Constituição protege o direito de não ser torturado, nem sofrer maus-tratos, cabe deduzir que alguém que se sinta degradado, como Ramón Sampedro, possa dispor de sua própria vida. De fato, ninguém que tenta o suicídio e falha é processado depois. Entretanto, quando é preciso a ajuda de outra pessoa para morrer com dignidade, então o Estado interfere na independência das pessoas e diz que não pode dispor de sua própria vida. Isso, meritíssimo, só se faz baseado em crenças metafísicas, quer dizer, religiosas. Em um Estado, repito, que se declara laico! Senhores, peço uma decisão jurídica, mas, sobretudo, racional e humana.”

O advogado, de forma brilhante e racional, deu uma lição de sabedoria e lógica. Infelizmente, os juízes não a captaram. Negaram, pois, o direito de Ramón Sampedro ser submetido à eutanásia.
No final do filme, Ramón vira a cabeça para a esquerda, pegando com a boca um canudo que está dentro de um copo. No copo, água misturada com cianureto de potássio. Alguém, obviamente, preparou tudo a pedido de Ramón. Com certeza, foi sua grande amiga Rosa. E Ramón pediu-lhe que sua morte fosse filmada. Antes de ingerir o poderoso veneno, Ramón, em sua cama, diante de uma filmadora, diz que foi uma criança que preparou tudo. Ele, é óbvio, assim agiu com o objetivo de afastar qualquer responsabilidade penal sobre sua grande amiga Rosa. E deu certo! Ramón morreu feliz, e ninguém foi responsabilizado penalmente.
A história de Ramón Sampedro é realmente fantástica. E o filme a retratou muito bem. O ator que interpretou Ramón, Javier Bardem, é simplesmente maravilhoso. Eis, caro leitor, um filme lindo e empolgante.
O livro “Cartas do inferno”, que deu origem ao filme “Mar Adentro”, escrito pelo próprio Ramón Sampedro, é mais maravilhoso do que o filme. Como é óbvio, há coisas ali que não foram mostradas na película cinematográfica. O mais emocionante se encontra no final do livro: a carta original de despedida de Ramón endereçada a seus familiares. O título “Cartas do inferno” foi uma escolha do próprio Ramón. Inferno porque foi escrito durante a sua tetraplegia, um autêntico inferno para Ramón.
No início do livro, na página 17, Ramón escreve:
“No dia 23 de agosto de 1968 fraturei o pescoço ao mergulhar em uma praia e bater com a cabeça na areia. Desde esse dia sou uma cabeça viva e um corpo morto.”

Cabeça viva e um corpo morto porque Ramón, devido à tetraplegia, só conseguia mexer a cabeça. O resto do seu corpo estava morto, sem movimento algum. A cada 3 horas, sua cunhada, Manuela, o empurrava para mudar de posição. E Ramón usava sondas.
Mais à frente, na mesma página, ele escreve:
“Se eu fosse um animal, teria recebido um tratamento de acordo com os sentimentos humanos mais nobres. Teriam posto fim à minha vida porque lhes pareceria desumano deixar-me nesse estado pelo resto da vida. Às vezes é um azar ser um macaco degenerado!”

Veja, amigo leitor! Que belíssima lógica utilizada pelo Ramón Sampedro! Em artigos passados, comentei acerca dela. Fico feliz por saber que o meu ponto de vista foi ventilado por Ramón. Como já afirmei, no Brasil, a prática da eutanásia é proibida. Só que essa proibição é maluca e ilógica por vários motivos. E um desses motivos está aqui. O Ramón tem toda razão. O Estado brasileiro, a exemplo da Espanha do tempo em que viveu Ramón, pratica a eutanásia em animais irracionais, porém nega sua prática a seres humanos. Que hipocrisia! Que estupidez! Veja, amigo leitor, por exemplo, um cavalo de corrida. Se um cavalo de corrida tiver, por exemplo, duas pernas quebradas, ele pode ser sacrificado a fim de que não sofra durante o resto de sua vida. Ou seja, o Estado brasileiro permite a prática da eutanásia porque não suporta ver o sofrimento do pobre cavalo. A mesma coisa, amigo leitor, ocorre com um cachorro, que também é um animal irracional. Se um cachorro qualquer for atropelado por um carro, e, levado a um veterinário, for constatado que não poderá sobreviver, o Estado permite que o veterinário pratique a eutanásia no cãozinho para que ele não fique sofrendo muito inutilmente. Ora, porra, se o Estado brasileiro permite a eutanásia em animais irracionais porque não aguenta ver os bichinhos sofrendo, com mais razão ainda deveria permitir a eutanásia em seres humanos porque, com certeza, é mais gritante o sofrimento de uma pessoa. Percebeu, caro leitor, a loucura do Estado brasileiro? Diante do sofrimento de um animal irracional, o Estado diz:
“Mate o bichinho para que ele não sinta dor desnecessariamente!”.
E, diante do sofrimento de um ser humano, o Estado diz:
“Não matem esse filho da puta! Deixem esse filho da puta morrer naturalmente com dor intensa!”
Que loucura! Que hipocrisia! Ramón Sampedro toca nesse ponto acima. E, bastante gozador, diz que foi um azar ele ter nascido um macaco humano pelo fato de o ser humano ser parente do chimpanzé. Se o Ramón fosse um macaco autêntico, por exemplo um chimpanzé, e tivesse quebrado a coluna, o Estado permitiria que ele fosse submetido à eutanásia. Já que ele não é um macaco autêntico, mas um ser humano, então o Estado não lhe permite a Eutanásia, ou seja, ele tem que se lascar até o dia em que a morte chegar. Que loucura! Que insensatez!
Nas páginas 52 a 55, Ramón responde à carta de Belén, uma jovem que o aconselha a desistir de morrer por intermédio da ação de terceiros. Ela, pois, critica a eutanásia, sem apresentar fundamentação lógica. Num certo trecho (página 55), Ramón diz:
“A eutanásia é uma forma racional e humana de ajudar. Sacralizar o sofrimento me parece ser a forma mais cruel de escravidão, e só as pessoas aterrorizadas pelo mito do pai e sem critério próprio podem acreditar em tamanha barbaridade. Meu corpo sobrevive graças aos medicamentos modernos, e a uma sonda para poder urinar, além da dedicação e do sacrifício de uma ou duas pessoas que se esforçam para manter-me com vida, limpo e alimentado.”

Com razão, Ramón! A eutanásia é uma forma racional e lógica de ajudar. À luz da razão e do Direito, a vida de uma pessoa pertence exclusivamente a ela própria. Cada pessoa é dona de sua vida. Cada pessoa pode livremente fazer o que quiser com sua vida, sem dar satisfação a alguém. Se uma pessoa qualquer tenta se suicidar e não consegue, jamais será alvo de inquérito policial e, muito menos, de ação penal. Por quê? Porque ela tentou tirar a própria vida, e isso não é crime perante o ordenamento jurídico brasileiro. E por que não é crime? Não é crime porque a vida é da própria pessoa, e de mais ninguém. Assim, uma pessoa pode tirar a própria vida, mas não pode tirar a vida de outra pessoa porque aquela vida pertence a outrem. Se uma pessoa mata outra, vai responder por homicídio. Se uma pessoa tenta se matar e não consegue, não responderá por crime algum. Percebeu, caro leitor, como a vida de uma pessoa só pertence a ela, e a ninguém mais? Ramón afirma que a eutanásia é uma forma racional e humana de ajudar porque apenas ela poderia tirá-lo da vida infernal que ele levava, com imobilidade corporal, utilização de sondas para urinar, ingestão de medicamentos e o sacrifício de pessoas da família. E Ramón diz também que a sacralização do sofrimento é uma barbaridade. E é mesmo, caro leitor! Sacralizar o sofrimento significa dizer que o sofrimento existe porque é uma punição de Deus. Quer dizer que o sofrimento é algo sagrado. Que absurdo! Que burrice! Na verdade, sofrimento nada tem a ver com sagrado. Seres vivos (o homem e os animais irracionais) sofrem naturalmente. Não há deuses que causam nos seres humanos e nos animais irracionais pragas, doenças e acidentes. Essas desgraças surgem espontaneamente porque seres vivos são suscetíveis a elas.
Nas páginas 60 a 64, Ramón responde à carta de outra jovem, Maria. Maria faz uso da religião para repudiar o desejo de morrer latente em Ramón. Ele, na página 61, escreve a ela:
“Não me levanto, como você faz. Acordo às oito e meia da manhã. Escuto notícias ou música até nove e meia ou dez horas. Tomo café, e depois tenho algumas horas determinadas para ler, escrever o que penso. Enquanto trocam minha posição, a cada três horas --- mais ou menos ---, vou observando o que as autoridades inventam para que as nações e as massas olhem na direção que elas querem (...) Depois virão os espertalhões para nos oferecer suas religiões protetoras, com todo tipo de seitas e deuses diversos. O que deveria nos ser ensinado, desde que nascemos, é o espírito crítico. Deveriam nos explicar a teoria da origem da vida e a evolução das espécies. Seríamos melhores crentes. Seríamos mais humildes e muito mais humanos.”

Com certeza! Ramón diz a verdade! É fácil explicar por que ele diz a verdade. Ao longo de sua história, o homem sempre criou deuses, os mais diversos. Basta analisar qualquer civilização humana. Os egípcios, por exemplo, criaram vários deuses. Eram, pois, politeístas. Os gregos, também, inventaram seus deuses, com características diferentes. Os hebreus, o povo da Bíblia, criaram apenas um Deus, Jeová, que também é adorado pelos cristãos. Os hebreus eram monoteístas. E os cristãos são também monoteístas. Os fenícios também tiveram os seus deuses. E, hoje, ainda há civilizações humanas que são politeístas. É fácil perceber que os deuses não são iguais. Ao contrário, são diferentes. Por quê? Porque cada civilização, cada povo, pensa de forma diferente. Ramón afirma que a humanidade deveria estar mergulhada na Ciência, e não nas religiões. Com certeza, os seres humanos seriam melhores. Ora, amigo leitor, a história das religiões é marcada pelo fanatismo e intolerância. A quase totalidade de todas as guerras havidas na história do homem é de cunho religioso. É o homem religioso que pratica as piores barbaridades, as piores maldades. As civilizações humanas, por causa da religião, matam seus semelhantes simplesmente porque adoram deuses diversos. Cada civilização vê seu deus ou seus deuses como verdadeiros. Por isso, os outros também devem acreditar neles. Se forem desobedientes, devem morrer. As 3 maiores religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) torturaram e mataram milhões de pessoas inocentes. Diante da maldade dessas 3 religiões, Adolf Hitler, um monstro, parece até que foi um ser inocente. Ramón diz à Maria que, desde a infância, deveria ser ensinado ao homem o espírito crítico, o espírito científico, em vez da religião. Com certeza, o mundo seria muito melhor. Por causa da religião, por motivos religiosos, seres humanos ainda hoje se matam.
Nas páginas 86 a 94, Ramón escreve à sua querida amiga Laura. Há, no livro, muitas cartas dedicadas à Laura. Na página 87, Ramón diz:
“O dia que me lancei ao mar --- melhor dizendo, que caí --- estava pensando, justamente, em outro amor: em um que durou apenas vinte e dois dias. Ela tinha dezoito anos e eu, vinte e quatro. Isso havia sido quase um ano antes, em um pequeno porto de Fortaleza (Brasil).”

Nesse texto, Ramón revela que esteve no Brasil, em Fortaleza, capital do Ceará, onde, de passagem, como marinheiro, teve um caso amoroso com uma jovem. Isso ocorreu em 1967, um ano antes de Ramón ter mergulhado para sempre em sua tetraplegia.
Na página 186, Ramón escreve:
“O Estado e a religião, em sua condição de grupos e castas institucionalizadas para dominar, não têm razões de alcance ético e moral para negar o direito da pessoa de pôr termo a sua vida. A vontade pessoal é mais nobre porque o que a razão busca não é terminar com a vida, mas sim com a dor, que não tem sentido para a vida. O que o Estado e a religião perseguem é impor o princípio da autoridade. Mas um princípio que anula a liberdade de consciência é um princípio totalitário, imoral.”

Mais uma vez, com razão, Ramón! O Estado e a religião não têm ética e moral para negar o direito da pessoa de pôr um fim à sua vida. O Estado mata seres humanos inocentes, que querem viver. E a religião também mata seres humanos inocentes, que querem viver. Onde está a ética? Onde está a moral? Veja, leitor amigo, o Estado brasileiro. Ele nega a prática da eutanásia a um ser humano que sofre, mas, por outro lado, mata seres humanos inocentes que querem viver. Que hipocrisia! Que ausência de ética! A Justiça brasileira, ao negar a eutanásia, se ampara no artigo 5º, “caput”, da Constituição, que diz:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”

A Justiça brasileira nega a eutanásia a um paciente que sofre, afirmando que, segundo a Constituição, o direito à vida é inviolável. Ora, cacete, porém essa mesma Justiça manda matar um ser inocente que realmente quer viver. Trata-se do aborto em razão de um estupro. Segundo o Código Penal brasileiro, se uma mulher engravida em decorrência de um estupro, querendo, a Justiça pode determinar que aquele ser humano que está dentro do útero materno, vivo, seja exterminado, morto. Que hipocrisia! Que falta de ética! Se a própria Justiça defende a inviolabilidade do direito à vida, não deveria permitir a prática do aborto em qualquer modalidade. Mas não só defende, como realmente manda matar um ser inocente. Ou seja, nesse caso, a inviolabilidade do direito à vida vai parar numa lata de lixo. Percebeu, caro leitor, a insensatez, a hipocrisia e a loucura da Justiça brasileira quando nega a eutanásia com apoio no mesmo princípio constitucional? Ou seja, a regra vale para a eutanásia, mas não vale para o aborto, que é gravíssimo, já que aqui o ser humano quer viver e goza de toda saúde.
Veja outro exemplo, leitor amigo! O Estado brasileiro não permite a eutanásia, mas aceita que pessoas inocentes morram à míngua. Em todo o Brasil, nos hospitais públicos, crianças, mulheres e idosos morrem por falta de assistência médica. E morrem na calçada dos hospitais, sem atendimento, porque faltam médicos e leitos. Todos os dias, os noticiários de televisão mostram essa realidade. Onde está, pois, a garantia constitucional da inviolabilidade do direito à vida? Onde? Onde? Será que cidadãos inocentes que procuram hospitais públicos não têm direito a viver um pouco mais? Se têm, esse direito está na lata de lixo porque cidadãos estão morrendo todos os dias por falta de atendimento hospitalar. O Estado brasileiro, somente o Estado brasileiro, é o responsável pela ocorrência dessas mortes. Está matando pessoas inocentes que querem continuar vivendo. Como, então, proibir a eutanásia a um paciente que sofre, que realmente quer morrer para se livrar do sofrimento? Pura hipocrisia, não é mesmo, amigo leitor?
Nas páginas 245 e 246, Ramón desabafa:
“O conhecimento liberta o indivíduo da superstição e do temor (...) As religiões são pragas que a razão deve eliminar, mas temo que para resolver a crise elas tentarão fazer o que sempre fizeram: matar os mestres da razão científica pura com a alegação absurda de que são filhos (as) de um selvagem Satã.”

Com razão, Ramón! Na página 262, ele mostra o quadro do inferno em que vivia há 27 anos:
“Hoje se passaram vinte e sete anos. Hoje, vinte e sete anos depois, o inferno segue sendo minha morada. Tenho ao meu redor seres que me amam. Eles cuidam de mim com paciência, respeito e carinho, mas não posso tocá-los, nem lhes agradecer com uma carícia de minha mão. Sigo no inferno porque ouço a chuva, mas sei que não pode acariciar meu corpo, como antes fazia. Sigo no inferno porque não posso expressar o amor a uma mulher como meu cérebro deseja. Ela diz que com a minha boca lhe basta (...) Ela não é capaz de entender o que significa não sentir nada sexualmente. Vi e senti as chamas do inferno quando Rosita, a menor de minhas queridas sobrinhas --- tinha então três meses --- foi deixada sozinha comigo. Manuela, minha cunhada, a pessoa que torna mais suportável essa vida que não aceito viver, me disse que se a nenê chorasse a única coisa que deveria fazer era falar um pouco com ela. A nenê começou a chorar e eu lhe falava, lhe falava e, quanto mais coisas lhe dizia, mais ela chorava. Depois começou a tossir; eu percebi como ela engasgava, e, diante de minha impossibilidade de acalmá-la com minhas palavras, achei mais prudente me calar. Fiquei aterrorizado com a possibilidade de que se asfixiasse, e eu deitado em minha cama sem poder fazer nada. Sempre lembrarei daquele dia como o auge da impotência. Como naquela tarde em que minha mãe ---- morreu de pena pelo que me acontecera, mas os médicos lhe diagnosticaram um câncer --- caiu no meio do corredor. Também estávamos sozinhos. Ela havia desmaiado e eu, a dois passos dela, não podia ajudá-la. Pensei em sua morte e se repetiu a imagem de minha cabeça unida ao peso de um corpo morto, só ela funcionava.”

Que triste relato!
Não conheço, amigo leitor, sequer, um argumento contra a prática da eutanásia que seja racional, lógico e humano. Não conheço. O advogado de Ramón Sampedro foi notável diante do Tribunal:
De fato, ninguém que tenta o suicídio e falha é processado depois. Entretanto, quando é preciso a ajuda de outra pessoa para morrer com dignidade, então o Estado interfere na independência das pessoas e diz que não pode dispor de sua própria vida.”

Aqui está a verdade, amigo leitor! Eis a prova incontestável de que a vida de uma pessoa só pertence a ela, e a mais ninguém. Repito: se um cidadão brasileiro resolve se suicidar, não obtendo êxito, jamais será indiciado em inquérito policial ou processado no Poder Judiciário porque não cometeu crime algum. E não cometeu crime algum justamente porque resolveu tirar a própria vida. Nesse caso, pode. Ora, se, no Brasil, uma pessoa pode tirar sua própria vida, não sofrendo punição alguma caso o suicídio não se realize, o mesmo direito deveria ser estendido a um médico que realiza a eutanásia a pedido de um paciente enfermo. Se um paciente não pode fisicamente mover braços e mãos para pôr um fim à sua vida, o que não acarretaria punição penal alguma, então o médico não deveria ser responsabilizado por esse ato, já que apenas substituiu braços e mãos do paciente paralítico. Isso é óbvio! Ou seja, o Estado brasileiro diz à pessoa que deseja suicidar-se:
“Você pode tentar o suicídio. Se escapar, não será punido jamais. A vida é um direito, e não uma obrigação.”
E esse mesmo Estado, diante de uma pessoa que deseja suicidar-se, mas não pode mover o corpo para realizar o ato, diz:
“Você não pode obter ajuda de alguém para morrer. Se um médico fizer isso, será processado por homicídio. Você pode fazer a ação. Terceiros, não! Já que você não pode fisicamente realizar o ato, uma vez que não move seu corpo, sinto muito. Acaba de perder o direito de suicidar-se”
Que loucura! Que insensatez! Que ausência de lógica!
Num dia qualquer de janeiro de 1998, após sofrer com sua tetraplegia durante 30 anos por causa da ignorância humana, Ramón Sampedro, em segredo, diante de uma filmadora, virou sua cabeça para a esquerda, alcançando com a boca o canudo por meio do qual o veneno entrou em seu estômago. Deixou de sofrer poucos minutos depois. Morto, ele já estava desde 1968 quando ficou tetraplégico.

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